20060220

Alguns pressupostos burkeanos (Daniel Serravalle de Sá, 2006)

O pensamento conservador começou a se desenvolver no século XVIII e foi sensivelmente influenciado pelos acontecimentos revolucionários ocorridos na França, em 1789. O conservadorismo no Reino Unido surgiu das idéias contidas no livro Reflexões sobre a Revolução em França, do parlamentar Edmund Burke. O livro foi publicado inicialmente em 1790, sendo escrito pelo o político no calor dos acontecimentos ainda insurgentes. Nesse texto, que constitui um argumento de classe do conservadorismo, Burke se posicionou contra o levante popular. Ele procura desqualificar o discurso revolucionário, se antecipando para que este não atravesse o canal e ganhe adeptos na Inglaterra. Na sua argumentação anti-revolucionária, Burke arrisca previsões de grande violência e desfechos adversos para as propostas libertárias da Revolução Francesa. Para a reputação de Burke, parte dessas previsões viriam realmente a se confirmar, sobretudo durante a época do Terror, a mais violenta da Revolução Francesa. Burke defende a superioridade do sistema político britânico, sustentando que a liberdade do cidadão inglês é uma herança nacional e que estaria mais segura em um governo que balanceasse igualmente no tripé: democracia, aristocracia e monarquia.
“Nem todos os sofistas do seu país poderão produzir nada melhor para garantir um liberdade razoável e generosa que o método que nós adotamos; nós que procuramos seguir a natureza ao invés de nossas especulações e que preferimos confiar a conservação de nossos direitos e privilégios aos sentimentos de nossos corações ao invés de entregá-las a à sutileza de nossas invenções”. (Burke, 1977: p.70)

Burke via na Revolução Francesa um projeto malsucedido, porque seus líderes tentaram subverter um sistema político coeso e colocar outro em seu lugar de imediato. No seu entendimento não houve processo gradual de mudança mas um corte bruto, onde um fluxo natural fora interrompido, e a ordem deixou de ser perpetuada. Segundo o autor, quando a monarquia absolutista que vigorava no França sofreu o “golpe”, e o feudalismo fora declarado extinto, comprometeu-se toda a sociedade organizada. A revolução destituiu e destruiu as instituições religiosas, executivas, legislativas e judiciais que haviam se formado ao longo de séculos.
Na avaliação de Burke a monarquia absolutista francesa era a melhor na Europa, ainda que estivesse necessitando de algumas medidas corretivas para diminuição de abusos. Segundo o autor, tais reformas já estavam engatilhadas porém não houve tempo hábil de colocá-las em prática, antecipando a revolução. Se por um lado o autor procura defender a aristocracia francesa, por outro culpa-a por não ter evitado o rumo dos acontecimentos. Em sua crítica há uma oposição de interesses entre: o landed interest, representado pela nobreza e o moned interest, representado pelos burgueses. Para Burke, se a nobreza, proprietária de terras, tivesse aberto as portas da sociedade para burguesia, detentora de capital, a revolução poderia ter sido evitada. Por não ter feito as reformas contra os abusos e as concessões de classe necessárias, a aristocracia não conseguiu evitar a aliança entre os intelectuais e os burgueses que, unidos, acabaram por mobilizar o descontentamento popular, desencadeando a Revolução Francesa.
A crítica burkeana aos idealizadores da revolução, conhecidos também por racionalistas políticos, consistia em denunciar a metodologia doutrinária que apregoavam. De acordo com Burke a abordagem proposta pelos revolucionários não passava de uma série de máximas, sem cuidado pelo detalhe e pouco condizente com a realidade. Na ocasião do seu lançamento, Reflexões sobre a Revolução em França foi um livro extremamente popular, em nenhum do pontos que levantou faltou controvérsia, porém independente de toda a polêmica, se a análise de Burke foi acertada ou não, os acontecimentos revolucionários ocorridos na França o estimularam a conceber e escrever sua filosofia política.
A idéia subjacente à Reflexões sobre a Revolução em França compreende a sociedade como algo vasto e complexo, um organismo natural que se constituiu através de evolução histórica, não podendo ser interrompido abruptamente. Esse fluxo intermitente é depositário das experiências humanas, de sabedoria adquirida, e por isso deve ser reverenciado. De modo que, qualquer proposta de reforma para a sociedade deve ter em devida consideração a continuidade das tradições. Entende-se que o desejo conservador de manter “as coisas como estão” revela um entendimento da História como um fluxo contínuo, sem lugar para rupturas ou câmbios de direção. O fio condutor que supostamente uniria o passado ao presente, e ainda, teceria o futuro, seria urdido pela experiência e a tradição. No entendimento socio-político de Burke temos que uma comunidade de homens é fruto de laços históricos, e, tão antiga e intrincada são essas ligações que não podem ser racionalizadas. Sua visão organicista propõe que somente na ascendência histórica e na ordem natural o governo livre se faz possível.
Sobre igualdade entre os homens e ascensão dentro dessa sociedade, Burke é taxativo. Para ele o organismo social possui diferentes classes, e a desigualdade que existe entre os homens é inerente ao organismo. Assim, temos uma sociedade auto reguladora, que seleciona a sua própria “aristocracia natural”, cabe aos os homens comuns entender, aceitar e respeitar essa ordem estabelecida. Na concepção política burkeana, princípios abstratos, metas utópicas e regras gerais não são da ordem natural. Essa oposição pelos princípios abstratos promulgados na França, vinha da crença que os homens deveriam procurar no passado as repostas para suas questões do presente.
“Acredite-me, senhor, aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades compostas de diferentes classes de cidadãos é necessário que algumas delas se sobreponham às outras. Os niveladores, portanto, apenas mudam e pervertem a ordem natural das coisas; sobrecarregando o edifício social ao colocar no ar o que a solidez do edifício exige ser posta no chão” . (Burke, 1977: p.81)
Além da sua crença em uma aristocracia natural, Burke era convicto de ser o cristianismo a única e verdadeira fé. Homem religioso que era, fundamentava o seu argumento último e inapelável na Providência. Sua tese advoga que o homem é um animal social e cortado das suas raízes não passaria de uma besta. Esse organismo social é sustentado pelo costume e a tradição. A reverência à Deus e à ordem social devem ser os dois maiores pilares do homem pois é em última instância um propósito de divino.
“Sem condenar violentamente nem a crença grega, nem a armênia, nem, desde que os rancores não existem mais, a crença romana, preferimos a crença protestante, não por que ela tenha menos do Cristianismo em si, mas sim porque, segundo o nosso julgamento, ela tem mais. Somos protestante não por indiferença, mas por zelo” (Burke, 1977: p.112).
A aparente intransigência de Burke em relação à mudanças era suavizada com o argumento da “mudança controlada”. Procurando dar certa relatividade à questão, Burke aceitava que às vezes as mudanças se fazem necessárias. Entretanto, advogava que essas deveriam ser ínfimas e que deveriam almejar ao máximo a preservação da ordem estabelecida. Tendo em vista que os limites e a natureza dessas mudanças não são devidamente mencionadas, talvez trate-se de uma saída retórica dentro de uma argumentação tão elaborada. Uma brecha por onde ele poderia escapar de uma posição sectária e rebater possíveis acusações de intransigência e passadismo.

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