20050707

O Criminoso Marquês (Daniel Serravalle de Sá, 2005)

Muitos já ouviram falar de Donatien Alphonse François, o marquês de Sade (1740-1814), mais conhecido por ter emprestado seu nome para a psicopatologia humana que se convencionou chamar de sadismo, na qual castigos sexuais são infligidos com a finalidade de gerar o sofrimento da vítima e o deleite do algoz. Entretanto poucos sabem que pelos crimes de luxúria cometidos contra a sociedade francesa do século XVIII, o infame marquês pagou um preço caro e permaneceu grande parte da sua existência na prisão. Seu trajeto em vida foi errático, a origem nobre e próspera não foi o suficiente para impedir sua desdita. Mas Sade certamente desfrutou das riquezas e luxúrias da vida aristocrática francesa anterior à Revolução. Sua família, radicada na região de Provença, era bastante influente e orgulhava-se de uma comprovada descendência de Laura, musa do poeta italiano Petrarca. O jovem Sade, no auge da sua glória, ocupou o posto de capitão na cavalaria durante a guerra dos Sete Anos. Porém, a partir de 1768, um longo revés da fortuna passa a assolar o marquês.

Nesse ano suas práticas conhecidamente devassas lhe renderam uma condenação por sodomia, no processo movido por Rose Keller (ou Kailair), situação da qual ele escapa quase intocado. Posteriormente, suas constantes parties de libertinage o levam a outra condenação em 1772, no episódio conhecido como o caso das garotas da Rue de Capuchin. Devido a uma série de condições desfavoráveis, entre as quais pode-se citar os freqüentes excessos do marquês, seus desafetos pessoais, as intrigas familiares e políticas, a própria decadência da monarquia absolutista, parecem concentrar nele seu "bode expiatório". Em 1777, o tribunal o condena, em definitivo, a um encarceramento de quatorze anos, período mais longo que permaneceria na cadeia, mas não o último.

Mantido quase sempre em condições insalubres, Sade passa um total de vinte e sete anos de sua vida trancado em diferentes prisões e sanatórios da França, dos quais pode-se citar: Miolans, Vincennes, Saumur, Pierre-Enclise, Bastilha, Sainte-Pelagie, Madelonnettes, Saint-Lazare, Picpus e Charenton. Apesar dos longos anos de prisão, não foi na restrição da liberdade que o marquês de Sade encontrou reforma pela sua conduta libertina. Ao contrário, durante o tempo em que permaneceu preso, desenvolveu sua concepção oblíqua da natureza e do mundo. Seu entendimento caótico da natureza e a orientação fundamentalmente sexual do seu mundo, produzem um universo que exalta a mistura de libido e violência que jamais procurou refúgio na espiritualidade ou princípio divino. Obrigado à reclusão, o marquês passou por um processo de intelectualização na cadeia e tornou-se um escritor: despendia o tempo lendo, escrevendo cartas e elaborando suas famigeradas histórias libertinas. Apesar de toda precariedade do cárcere, longe de ser um ambiente propício à leitura e escrita, entre outros livros, o marquês teria lido com atenção O Príncipe (1532), de Maquiavel, L’Homme Machine (1748) de La Mettrie e O Sistema da Natureza (1770) de D’Holbach, apropriando-se das idéias materialistas promulgadas nessas obras para elaborar a sua posição. Jean Desbordes, que estudou a correspondência relacionada ao marquês durante sua reclusão, publicou as cartas que, em sua maioria, eram pedidos e solicitações endereçadas à sua esposa, ao seu procurador, às autoridades; sem referência direta à assuntos políticos ou filosóficos. Entretanto, Desbordes aponta um amadurecimento das idéias e evidencia uma crescente preocupação filosófica imbuída nas cartas.

Ainda segundo Desbordes, a correspondência do marquês ao final da vida revelaria uma posição irredutível no campo da idéias e convicções, indicada na vontade incessante de rescrever e publicar seus textos libertinos e pornográficos. Sobre seu longo período no cárcere, sua sobrevivência à condições muitas vezes insalubres e sua perseverança, o biógrafo Donald Thomas, diz que Sade "emergiu com o espírito intacto e uma chocante filosofia alternativa do comportamento humano que escrevera no longo período de sua reclusão" (Thomas, 1992: 10). Entre seus trabalhos mais representativos, aqui citados os títulos em francês e as datas de publicação, estão Les Cint Vingt Journées de Sodome (1782), Dialogue entre un prête et un moribond (1782), Justine, ou Les Infortunes de la Vertu (1791), Philosophie dans le Boudoir (1795), Aline et Valcour (1795), Juliette, ou Les Prospérités du Vice (1797), Les Crimes de l’amour (1801). Apesar de ter escritos outros textos e peças teatrais, sua reputação se encontraria nestes livros acima que fizeram sua (in)glória no século XVIII. Ciente das retaliações que poderiam suceder o marquês devido ao conteúdo dos seus romances, Sade publicava sob um nomme de plume e chegou a negar enfaticamente ser o autor de Justine para evitar a guilhotina. De fato, sua previsão confirmou-se, pois, de modo geral, os críticos dos séculos XVIII e XIX vilificaram a figura do marquês.

Em 1790 a roda da fortuna pareceu dar uma guinada, quando as forças revolucionárias o libertaram da pena imposta na lettre de cachet, assinada por Luís XVI o rei deposto. Em liberdade o marquês travou relações sociais que lhe proporcionaram uma recolocação vantajosa na sociedade, foi nomeado presidente da Section de Piques, espécie de distrito da cidade de Paris. Poderia ter aproveitado a oportunidade para vingar-se da família Montreuil, que tanto o fez padecer no cárcere, mas sublimou o desejo. Nesse período aproveitou para publicar os livros engendrados na cadeia e tentou emplacar algumas peças de teatro, que todavia não obtiveram muito sucesso. Mas novas conturbações o levam novamente à cadeia. Com alguma dignidade, enfim, Sade termina a vida, longevo, e supostamente sem remorsos nem culpas, no sanatório de Charenton em 1814.