20060110

Loredano: um vilão gótico nos trópicos (Daniel Serravalle de Sá, 2006)

Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua mão; poderia salvá-lo ou precipitá-lo no despenhadeiro; e contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro.
Rui tinha medo: não compreendia o motivo desse terror irresistível; mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo.
No entanto a imagem da riqueza esplêndida, brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante dos seus olhos e o deslumbrava; um pouco de coragem e seria o único senhor do tesouro fabuloso, cujo era o italiano depositário do segredo.
Mas coragem é o que lhe faltava; por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspender-se ao frechal e deixar a tábua rolar no abismo; não passou de um desejo.
Venceu afinal a tentação.
Teve um momento de desvario: os joelhos acurvaram-se; a tábua sofreu uma oscilação tão forte, que Rui admirou-se de como o italiano tinha podido suster.
Então o medo desapareceu; foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro; o primeiro esforço lhe dera a ousadia, como a vista do sangue excita a fera.
Um segundo abalo mais forte agitou a tábua, que oscilou à borda do rochedo; porém não se ouviu o baque de um corpo; não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra. Rui, desesperado, ia soltar a prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e sumida, a voz do italiano, que se percebia no silêncio profundo da noite.
- Estais cansado, Rui?... podeis tirar a tábua; não preciso mais dela.
O aventureiro ficou espavorido; decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo e escarnecia do perigo; um ente superior a quem a morte não podia tocar.

(O Guarani, parte III, capítulo III, p. 312-3)


Apesar das tentativas de Rui de fazê-lo cair, Loredano caminha sobre o abismo, sugerindo o domínio de poderes infernais. Seu feito não apenas desafia as leis da probabilidade, mas reclama controle sobre o abismo, o símbolo da destruição. Esse instante, que se coloca além da compreensão, é um momento gótico. Esta cena fantasmagórica não vem sem aviso, ela representa o auge de uma série de pequenos indícios, que vem sendo construída desde o início do romance, em relação à malevolência do vilão. Loredano é chamado de condottiere, “aventureiro de baixa extração” (p.113), ele fala com “um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita” (p. 64). Alencar parece apostar no estereótipo do vilão italiano à moda inglesa. Apesar de Loredano ser eloqüente e articulado, sua condição de estrangeiro é salientada pelo sotaque. Loredano é duas vezes forasteiro, por ser o vilão e por não ser português ou índio. Sua aparência é descrita da seguinte maneira:

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa, eram os principais traços deste aventureiro.(O Guarani, parte I, capítulo I, p. 66)
Visando acumular o máximo de tensão para as cenas de clímax, a maldade do vilão é apresentada num crescimento gradual. Ao longo do romance, Loredano sofre um processo de “bestialização”, que se inicia pela visão e olfato; os aspectos sensoriais começam a suplantar a racionalidade, “um olhar ardente, duro, incisivo; enquanto as narinas dilatadas aspiravam o ar com a delícia da fera que fareja a vítima” (p. 95). A transformação de homem em fera se torna mais freqüente, as definições cada vez mais precisas. Em outro momento, diz-se que “sua pupila fulva brilhou na treva, como os olhos da irara” (p.116), comparado aqui a uma onça. Ele também é chamado de “inimigo talvez mais terrível que os Aimorés, porque, se estes eram feras, aquele podia ser a serpente escondida entre as folhas e a relva” (p.159).[1]

À medida que o romance se desenvolve, e o plano de Loredano vai sendo revelado, a traição de Loredano ganha contornos de inimaginável blasfêmia. Sua luxúria por Ceci é tão incontrolável a ponto de ele dizer: “ainda cadáver, o contato desta mulher deve ser para mim um gozo imenso” (p.311). Com a introdução de aspectos hediondos, como a necrofilia, Loredano começa a transcender a condição de fera para atingir o patamar do diabólico, e ao andar sobre o abismo Loredano torna-se o próprio diabo. O narrador conclui que “decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo e escarnecia do perigo; um ente superior a quem a morte não podia tocar” (p.313). O controle que ele exerce sobre parte dos aventureiros é anormal, um “terror irresistível, uma obsessão e um pesadelo” (p.312). Apesar do momento de desorientação, não muito depois, o narrador entra novamente para desmistificar a ação com uma solução radcliffeana. O “sobrenatural explicado” entra para elucidar o truque (neste caso de andar sobre o abismo, uma corda de segurança) subordinando o improvável às leis físicas e o fantástico a uma explicação racional dos fatos. É pertinente que, enquanto Alencar se apropria do gótico poético de Radcliffe, baseado na Natureza pitoresca e no sobrenatural explicado, o comportamento ímpio do seu vilão guarda semelhanças com o padre Ambrosio, de Lewis, pois ambos os vilões não conseguem controlar sua luxúria.

Loredano compartilha dessa dimensão “animalesca” com os índios aimorés. Diferentemente da transformação progressiva sofrida pelo vilão, os nativos são desumanizados desde o princípio e não chegam ao patamar do demoníaco. Sua aparência e conduta animalesca indicam antes uma total ausência de costumes civilizados, formando uma “horda selvagem reduzida à brutalidade das feras” (p. 349). Eles são a imagem do país selvagem que Alencar deseja sobrepujar, “filhos das brenhas”, ou seja, das florestas, como são chamados, ainda na infância da raça.

Um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana.
Os cabelos arruivados caiam-lhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria.
Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.
Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros.
As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir ao homem e da nobreza do gesto.
Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo.

(O Guarani, parte III, capítulo XIII, p. 387-8)


Estilisticamente, os adjetivos tornam-se macabros, porém não menos poéticos, se compreendidos dentro de uma estética do terror. A descrição dos indígenas carrega implicações ideológicas amparadas por um discurso do horror, o qual desempenha uma função importante nessa sensibilidade, pois alimentam a ojeriza aos aspectos destacados. Aqui, Alencar emprega estratégias que conectam corpo e deformação à imagem dos aimorés; seu objetivo estético seria gerar tensões e contrastes que se oponham à beleza indígena representada por Peri, ou a beleza angelical de Ceci. Além disso, subjaz um discurso que se funda no indeferimento, no repúdio do barbarismo, que ocuparia uma posição inferior na escala de valores que Alencar está construindo. Tradicionalmente, essas técnicas narrativas, que associam carne e dor, foram um recurso largamente utilizado pelos romancistas góticos e se encontram na essência do conceito de sublime imaginado por Burke.

Passado o primeiro espanto, os selvagens bramindo atiraram-se todos como uma só mole, como uma tromba do oceano, contra o índio que ousava atacá-los a peito descoberto.
Houve uma confusão, um trabalho horrível de homens que se repeliam, tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e outras que desapareciam; de braços e dorsos que se agitavam e se contraíam, como se tudo isso fosse partes de um só corpo, membros de algum monstro desconhecido debatendo-se em convulsões.

(O Guarani, parte III, capítulo XIII, p. 392)

O monstro gargantuesco acima se refere à dicotomia entre civilização e barbárie. A idéia de Alencar, e sua utilização de um discurso de horror no retrato dos aimorés, comprova uma preferência pelos hábitos racionais europeus ao invés do instinto rudimentar do nativo. Mas não é isso que ele pensa de todos os indígenas, a discussão de valores é habilmente deslocada na figura do herói Peri que, apesar de ser índio, incorpora os valores civilizatórios.

A disposição de Alencar tende a projetar o modelo racionalista europeu como exemplo preferencial. A impressão que se obtém da leitura faz acreditar que o modelo defendido estaria além de questões étnicas ou culturais, impondo-se como padrão universal. Seu desejo é reproduzir nos trópicos o mesmo trato social da Europa, apresentando a civilidade dos costumes como a única conduta possível para homens de bem. Trabalhando com dicotomias, tudo que é considerado positivo no romance deve alinhar-se com o eixo da civilização. Justamente em Peri encontramos seu maior poder de persuasão; o índio seria o grande exemplo da sua proposta. Idealmente, Peri é a síntese de dois mundos, incorporando a nobreza refinada do europeu com o conhecimento empírico dos nativos. A fusão desses elementos pretende constituir a experiência de uma sociedade tropical cuidadosamente elaborada. Entretanto, dificilmente se pode reconhecer nele um personagem indígena, pois seu comportamento se assemelha mais aos códigos de honra seguidos por um cavaleiro medieval. Ele é até chamado de “um cavalheiro português no corpo de um selvagem” (p.102). Peri é um “amigo” enquanto ele adotar esses códigos, a valorização do personagem enquanto índio está condicionada à sua aceitação, ou alinhamento, com os costumes europeus, somente assim ele pode pertencer à nova ordem social que será instaurada. O clímax da sua derrota cultural acontece ao adotar o cristianismo; receber o sobrenome de Mariz é sua aceitação final das crenças do colonizador. Do lado oposto está Loredano, etnicamente alinhado com os europeus, mas que se move para a dimensão pagã e incivilizada dos aimorés, portando uma “fúria de Satanás precipitado no abismo” (p. 189).

Responsável por sabotar o projeto português de colonização, Loredano rebela-se contra a configuração da Casa de Mariz. Ganância, ambição e falta de mobilidade social parecem desencadear o descontentamento. Sendo o portador do mapa do tesouro, ele entende que não tem que se submeter às regras aristocráticas, mas seu amor por Cecília é a sua desdita. Sendo que os aimorés representam a brutalidade incivilizada, o autor descarta o vilão, descontente e apaixonado, como um elemento inadequado ao seu projeto de nação devido a sua cobiça e luxúria.

Loredano parece ser o único personagem capaz de promover mudanças no seu destino, em um romance onde a maioria dos personagens são "planificados", representantes de um papel social, e incapazes de comunicarem suas individualidades. Nesse sentido, seus processos psicológicos são inexpressivos, a exploração subjetiva da alma não se aprofunda e os personagens não se tornam “humanizados”, permanecendo no nível caricatural. Até certo ponto, a personalidade de Loredano parece conter um certo grau de antagonismo. Este seria representado pela oposição entre uma vida de pureza e de pecado, sendo a discórdia entre o espírito e o corpo um drama psicológico dentro do contraditório complexo que é a alma humana.

Quanto aos elementos da composição do personagem, alguns aspectos ligam o perfil de Loredano àquelas convenções estabelecidas pelos primeiros vilões góticos: a compleição física morena, os olhos ameaçadores, o passado obscuro, a origem italiana, a dupla identidade, inclinações violentas e a ganância excessiva. Alencar parece usar o vilão popularizado no romance gótico tradicional para insuflar sentimentos de estranhamento e alteridade entre os leitores brasileiros. Assim como os romancistas ingleses, Alencar estaria com isso levantando questões de nacionalidade. Entretanto, se o conceito de estrangeiro era facilmente reconhecível, propondo uma questão de patriotismo sob a qual todos poderiam se engajar, o projeto necessita de uma aclimatação para fazer sentido na realidade brasileira. Enquanto o modelo gótico tradicional incorporava o assunto de uma identidade nacional britânica, falando em nome de uma nação protestante, democrática, civilizada e tradicional, o mesmo não poderia simplesmente ser transferido para o Brasil.

Apesar de absorver algumas das convenções e dos elementos góticos, O Guarani diverge da fórmula inglesa particularmente ao não deslocar os assuntos nacionais para fora do país. Todo o conflito é situado dentro do Brasil. A condição de estrangeiro de Loredano é destacada no seu sotaque e no seu jargão usual, a exemplo de “per Dio” ou “per Bacco”. Enquanto todos os europeus na casa possuem nomes portugueses, o vilão pode ser notado por seu nome incomum.

A nova identidade assumida por ele parece ser uma referência a um célebre doge de Veneza, cuja riqueza e poder o vilão almeja igualar (ver p. 169). Todavia, diferentemente de muitos vilões góticos, Loredano não é nobre, detalhe que constitui uma distinção importante entre as formas britânicas e a brasileira. O passado do antagonista é parcialmente revelado num capítulo cheio de chuvas torrenciais e relâmpagos. Essa história é uma subnarrativa da história principal, muito parecida com a história de Spalatro e do Barone di Cambrusca em The Italian.[2] A interpolação (metanarrativa) aqui segue uma estrutura labiríntica de enredo, característica de muitos romances góticos. Essas são histórias que resistem a serem contadas e, em última instância, escondem mais do que revelam intenções. Loredano é filho de pescadores em Veneza, que entra na ordem dos Capuchinhos talvez para escapar da mesma sina do pai. Ele procura uma posição social melhor ingressando no seminário. Angelo di Lucca vem ao Brasil para trabalhar como missionário na conversão de indígenas. Suas possíveis privações econômicas enquanto criança tornaram-se privações psicológicas, efeito colateral do aprisionamento monástico, no qual sua sexualidade foi reprimida. Isto é revelado no dia em que ele descobre o mapa das minas de prata e abandona o hábito por uma vida de aventuras. Seu delírio gótico expõe seus anseios de fortuna e de prazer.


Diante de seus olhos, a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo, um oceano de metal fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse mar de prata ora achamalotavam-se, ora rolavam formando frocos de espumas, que pareciam flores de diamantes, de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol.
Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavam-se como em um espelho palácios encantados, mulheres belas como as huris do profeta, virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo.

(O Guarani, parte II, capítulo I, p. 180)
O frei regressa do desvario renascido como Loredano (l'ore dano, o minério nocivo?), e ele agora perseguirá o quinhão de mulher e de riqueza que o mundo lhe deve. Seu ressentimento social emerge diante da possibilidade de enriquecimento, e a bela Cecília torna-se depositária do seu desejo de amar. Pobreza, ambição excessiva e abstinência sexual constituem a fórmula alencariana do vilão.

A origem humilde de Loredano distingue-o dos seus potenciais modelos góticos, Ambrosio e Schedoni. Enquanto a maioria dos vilões góticos, em algum momento das suas histórias, foi rica ou desfrutou de algum prestígio, a ambição de Loredano emerge após uma vida de privações, e isso apontaria para o que ele representa nesse contexto. Nesse sentido, o vilão ganha personalidade própria. Adiante, mais diferenças separam Loredano de seus pares britânicos. Enquanto as súbitas revisões de consciência e changes of heart tomam de assalto os vilões ingleses, introduzindo confissões públicas, arrependimentos de última hora, a fim de dar um tom moralizante ao romance, Loredano permanece impassível em seus últimos momentos.


Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.
O italiano já sentia o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa, é impossível descrever a raiva, a cólera, e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício.

(O Guarani, parte IV, capítulo IX, p. 464)

Diante da morte não há arrependimentos declarados que sirvam para moralizar os momentos finais de Loredano; todavia, sua punição é exemplar para todos aqueles que ousem divergir da boa conduta e da religião cristã. Queimado na fogueira como um herege medieval (para ser purificado pelo fogo), o ex-frei não apela para a misericórdia dos homens, suplica aos Céus ou arrepende-se intimamente. Seus últimos momentos são silenciosos, frustrados e enraivecidos por um sonho de opulência e amor que não chega a se materializar. O Santo Ofício, a Santa Inquisição e a queima de hereges em praça pública foram assuntos principais para os romancistas ingleses que escreveram durante o auge do gótico, e o tema é usado aqui por Alencar.[3] O tribunal eclesiástico instituído pela Igreja Católica adotava esse procedimento, conhecido como Auto da Fé, ou seja, um ato de fé, como uma interpretação do princípio Ecclesia non novit sanguinem (A igreja não está manchada com sangue). Como no modelo britânico, Alencar não deixa o Mal sem punição, entretanto não força acomodações finais, ou as reconciliações forçosas que eram comuns na ficção inglesa. Essas diferenças na origem, nas motivações e na morte do vilão alencariano parecem apontar para quem ele seria. Ao assimilar alguns traços do modelo gótico, Alencar não reproduz a mesma ideologia protestante de que fala Victor Sage. Ele parece apoiar, acima de tudo, valores civilizatórios, como o racionalismo e a honra, em detrimento do primitivismo, brutalidade e traição. Além disso, o romance propõe princípios de domesticidade, família e cristandade, enquanto descarta a licenciosidade, a ganância e a impiedade.

Após exorcizar a casa portuguesa, os selvagens aimorés e o vilão italiano, Alencar parece indicar que velhos ideais aristocráticos assim como, o primitivismo e estrangeiros ambiciosos à procura de riquezas já não eram bem-vindos na sociedade brasileira de 1857. O fundo político do gótico torna-o a linguagem mais apropriada para tratar do assunto, pois fornece um discurso para esse tipo de exorcismo. Não obstante, Loredano difere dos seus pares britânicos, pois não representa mais o medo de uma revolução passada e distante, mas a resposta única de Alencar para as ansiedades brasileiras. O vilão gótico alencariano e as imagens góticas que ele cria representam uma contestação do tempo e a sociedade em que viveu. Sua resposta cultural, imbricada com discussões imperialistas e de soberania nacional, faz sentido na medida em que a sociedade brasileira ia abrindo espaço para pensamentos pré-republicanos, os quais o próprio Alencar ajudou a fomentar, ainda que ele não venha a ver a República. Em sintonia com o seu tempo, Alencar viu as possibilidades do país, que não desejava mais suportar o anacrônico modelo colonial e a exploração estrangeira. Loredano é o símbolo desse descontentamento, que é exorcizado pelo discurso gótico junto com as pessoas que viam o Brasil como um lugar de empreendimentos descomprometidos e de fácil rentabilidade. “Hei de ser rico e poderoso, contra a vontade do mundo inteiro!” (p. 181), diz Loredano demonstrando sua ética e revelando o que veio fazer.

É costumeiro representar o colonialista como um homem rico, geralmente bem arrumado, ou enxugando o suor com um lenço. Se britânico, ele poderá vestir algo na cor bege, um chapéu de caça e um monóculo, e talvez até beber chá servido em porcelana branca. Até mesmo entre uma boa parte da chamada crítica pós-colonial, essa representação do colono rico parece ser comumente empregada, perpetuando uma idéia que não é de todo correta. É obvio que alguns colonialistas eram muito ricos e sofisticados, e se tornaram ainda mais ricos com o comércio, enquanto outros perderam tudo na sua aposta por riquezas. Não obstante, um número significativo desses homens veio de condições pobres. Nos portos de Liverpool, por exemplo, eles eram recrutados pelas companhias de comércio e navegação, para se tornarem capatazes no exterior, baseados exatamente nesse critério de pobreza. A companhia sabia que suas origens humildes iriam constituir um ímpeto de ambição, e que eles iriam aproveitar ao máximo a oportunidade. Então, uma vez endinheirados, eles iriam imitar os hábitos e costumes das classes ricas. Eu entendo Loredano como esse tipo de aventureiro desfavorecido, aspirando construir uma fortuna. Nascido em uma família de poucos bens, ele está preparado para investir tudo na possibilidade de tornar-se rico, mesmo que isso signifique apelar para violência, seqüestro e assassinato. Na verdade, Loredano poderia ter saído da Casa de Mariz a qualquer momento, e conquistado a fortuna com seu mapa das minas de prata. Mas sendo o vilão de um romance romântico, seu reclame maior é amor. “Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D. Antônio de Mariz é um homem morto; essa é a minha parte na presa! É a parte do leão.” (p. 169).

[1] Ao discorrer sobre o terror no seu tratado sobre o Sublime, Burke diz que muitos animais são capazes de invocar idéias de transcendência. IN: Edmund Burke. A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas about the Sublime and the Beautiful. London: Routledge and Kegan Paul, 1958 (p. 57).

[2] Ver Ann Radcliffe, The Italian, pp. 131-255.

[3] Como Loredano, Ambrosio também seria queimado vivo, mas ele escapa do julgamento vendendo sua alma ao Diabo. IN: Matthew Lewis, The Monk, pp. 298-300. Charles Maturin também aborda a questão da queima de hereges em praça pública como fonte de horror no gótico inglês. IN: Charles Maturin. Melmoth, the wanderer, 2000.

No comments: