20060111

Os Vilões Góticos (Daniel Serravalle de Sá, 2006)

Como o cenário dos romances góticos raramente é a Grã-Bretanha, a representação usual da Natureza é orientada pela geografia estrangeira. Deslocar as ansiedades no tempo e no espaço seria uma maneira de projetar no “outro” assuntos que a tradição protestante21 não queria abordar em seu próprio território. Essa transferência presente no romance gótico dirige-se a questões de estética e política desencadeadas pelos episódios revolucionários na França em 1789. Os romancistas ingleses interpretavam os acontecimentos na França à luz da sua própria história, considerando a Revolução Francesa como uma perpetuação tardia da sua reforma burguesa de 1688, a qual limitou o poder monárquico subjugando-o ao parlamento. Tais histórias de horror eram ambientadas principalmente da Itália, mas também na França e na Espanha.
O romance gótico expõe suas contradições ao tentar reunir uma escala de valores burgueses, a exemplo do sentimentalismo, virtude, domesticidade e família, somados a um entusiasmo pela arquitetura medieval, os costumes e valores aristocráticos, expressando uma admiração por um mundo feudal que era ao mesmo tempo fonte de autocracia e barbarismo. Essa ambigüidade levou os romancistas à criação de vilões malignos, freqüentemente aristocratas ou clérigos, que personificavam essa relação dúbia e imprecisa. Os eventos que ocorrem nos romances góticos são comumente representados de maneira irônica. Essas demonstrações contra as iniqüidades das nações estrangeiras foram um clichê para o leitor inglês do século XVIII. Por esse ângulo, o romance gótico pode ser considerado um romance nacionalista, proclamando seu ufanismo através da noção de alteridade presente na história, a qual contrasta com a crença nas instituições inglesas e seus os valores civilizados.
A obsessão gótica com o clero católico e a aristocracia, enquanto depositários de maldade, representaria esse perigo que vem do exterior. Os romancistas ajudaram na criação de uma identidade nacional por meio de uma dicotomia que opunha uma multidão de leitores ingleses e os infames personagens católicos e continentais. “ ‘Your picture is complete’, said he, ‘and I cannot but admire the facility with which you have classed the monks together with banditti’ ”. (The Italian, p.50), palavras do padre Schedoni, suplantando o jovem herói Vivaldi na retórica e relativizando as certezas dos leitores. Somente os vilões góticos são capazes de cometer maldades tão grandes e ainda assim manter a majestade nas atitudes. Em Northanger Abbey (1818), Jane Austen destaca os limites dessas convenções criadas pelo romance gótico, reescrevendo-as ao seu modo idiossincrático. Ainda no auge da produção gótica, Austen expõe a estrutura desses romances satirizando seus aspectos estereotipados.22
O leitor geralmente escolhe os lados a partir da primeira descrição, ao ser feito cúmplice de um certo ponto de vista. Freqüentemente mais velho e mais experiente do que o herói e a heroína (como as nações românicas em relação à Grã-Bretanha) o vilão tem a compleição física descrita como escura, de pele morena e cabelos pretos, geralmente há algo de magnético ou perturbador nele. Chamar atenção para tais características seria uma maneira de propor contraste com o tipo claro inglês. Esse gancho inicial serve para introduzir uma afirmação nacional, na qual o narrador utilizará imagens e sutilezas lingüísticas objetivando criar uma afinidade com os leitores. A aparência do padre Ambrosio em The Monk (1796)23 exemplifica esse costume retórico:
He was a Man of noble port and commanding presence. His stature was lofty, and his features uncommonly handsome. His Nose was aquiline, his eyes large black and sparkling, and his dark brows almost joined together. His complexion was of a deep but clear Brown; Study and watching had entirely deprived his cheek of colour. Tranquillity reigned upon his smooth unwrinkled forehead; and Content, expressed upon every feature, seemed to announce the Man equally unacquainted with cares and crimes.
(The Monk, vol. I, capítulo I, pp. 8-9)
Ambrosio personifica o estereótipo físico do homem mediterrâneo e, ainda que nesse momento no romance ele seja jovem, toda a sua vileza irá se revelar. Sua respeitável pessoa pública contrasta com a intimidade depravada (a questão do duplo ou doppelgänger, notavelmente sintetizada em 1891, por Oscar Wilde, em The Picture of Dorian Gray). A corrupção do vilão, aliada à sua natureza arrebatada e obsessiva, propensa a acessos de fúria, é uma constante em quase todos os romances góticos. Apesar do autocontrole estudado dos antagonistas, eles são naturalmente agressivos e esse ardor incontrolável vai transparecer sob o verniz da aparência equilibrada, levando-os do “summit of exultation to the abyss of despondency” (The Romance of the Forest, p.317) - note-se a metáfora com a Natureza aqui. A inclinação dos vilões para a violência, a imoralidade e os maus-humores em geral dá suporte à idéia central na construção da “alteridade” como característica do gótico. O modo como esses romances debatem a alteridade e as diferenças é demonizando o outro. Mas ilustrar o “outro” de modo degenerado tem suas implicações. Supostamente, isso levaria os leitores a crerem na, ou ao menos a refletirem sobre a idéia de “retidão” moral e decência de princípios da nação inglesa, na qual, “virtude” seria um código para “civilização”. É por esse ângulo que os romances góticos contribuem para a construção de uma identidade nacional e institucional britânica. Em última instância, se dirigindo à questões de nacionalidade pela promoção de distinções raciais, culturais, religiosas e institucionais, os antagonistas cumprirão o seu papel. Como se espera, os vilões têm uma personalidade enganadora, a marca da sua esperteza. Seu comportamento e discurso se adequam à situação, o antagonista gótico lança mão de intimidações, truques e até elogios para alcançar seus objetivos. Impulsionado pela desonestidade, Schedoni adota um tom suave com a Marchesa di Vivaldi.
- To what do you allude, righteous father. enquired the astonished Marchesa; .what indignity, what impiety has my son to answer for? I entreat you will speak explicitly, that I may prove I can lose the mother in the strict severity of the judge.
- That is spoken with the grandeur of sentiment, which has always distinguished you, my daughter! Strong minds perceive that justice is the highest of the moral attributes, mercy is only the favourite of weak ones.
(The Italian, vol. I, capítulo X, p. 111)
A cena exemplificaria como Schedoni se apropria do jargão sentimental da heroína e o usa em seu próprio benefício. Sua destreza retórica induz a Marchesa a juntar-se a ele e apoiá-lo em seus planos. No nível da narrativa, a imitação do discurso ingênuo do herói e da heroína pelo vilão revela a habilidade da própria Radcliffe, que neste momento está expondo sua estrutura com uma pequena provocação, talvez demonstrando que atributos morais são antes uma pose que se adota do que sentimentos legítimos. No vilão, esse tipo de maldade, voltada para o interesse próprio, está largamente relacionada ao estudo da história da Serenissima Republica veneziana, então um exemplo típico de despotismo e oligarquia fora do Oriente.24 A “república” veneziana prosperou utilizando práticas baseadas na escravidão, na intermediação de finanças e no totalitarismo político. Em parte, os romancistas góticos ajudaram a construir esse leviatã, capitalizando suas histórias nas implementações estadistas que se originaram do mercantilismo veneziano. Textos como O Príncipe (1513), de Maquiavel, também contribuíram para essa estereotipização dos italianos, freqüentemente representados como pessoas obscuras e enganadoras. Shakespeare também utilizou o tema em Othello, the Moor of Venice (1601) e essa idéia permaneceu até, pelo menos, a releitura gótica de Schiller sobre o assunto em Der Geisterseher (1786-9), publicado em três partes durante três anos. Em 1792, Heinrich Zschokke criou um antagonista de vida dupla que era, paradoxalmente, aristocrata e mercenário. Abällino der grosse Bandit, é um conto do tipo gótico que foi traduzido do alemão para o inglês por Matthew Lewis, passando a se chamar The Bravo of Venice (1805). Essa história reafirma o papel de Veneza como um centro de corrupção política e de traição, mas também enfoca uma mudança notável na identidade típica do vilão. O personagem duplo Abellino/Flodoardo representa simultaneamente o lado escuro da nobreza e a sede por aventuras, ele é um caçador de fortunas e um empreendedor, de uma maneira burguesa.
Nesse sentido, o italiano funciona como um depositário de apreensões sociais, flutuando entre o aristocrata perverso e o burguês maléfico (ou ambos, como no caso de Zschokke), dependendo do ponto de vista do autor. Entretanto, como Fred Botting aponta, os vilões raramente são a causa da maldade por si só, pois o autêntico vício é identificado como um problema institucional,25 e não do indivíduo. O poder da ideologia política e cultural de Veneza alcançou a Idade Moderna, mesmo após a Serenissima ter se extinguido. Contraditoriamente, esse método veneziano tornou-se o mesmo adotado no projeto imperial da Grã-Bretanha, encapsulado no lema dividi et impera (divide e governa). No século XIX, o leão alado da Piazza di San Marco tornou-se o leão britânico, a serviço da rainha, presença sempre vigilante em inúmeros prédios públicos e outros edifícios espalhados por Londres.26
Olhos vigilantes foram um símbolo preferido desse comportamento autoritário, um atributo particularmente apropriado para lidar com temas relativos ao poder, à opressão e tirania. Olhos ameaçadores eram uma característica comum empregada na representação desses degenerados banditti que “seemed to penetrate, at a single glance, into the hearts of men, and to read their most secret thoughts; few persons could support their scrutiny, or even endure to meet them twice”. (The Italian, p. 35).
Nos romances góticos, é comum achar exemplos de intimidação na forma de olhos ou olhares temíveis. Ambrosio, em The Monk, exibe “a certain severity in his look and manner that inspired universal awe and few could sustain the glance of his eye at once fiery and penetrating” (p. 9). Melmoth possuía “a full-lighted blaze of those demon eyes” (Melmoth, the wanderer,1820, p. 12).27 O califa Vathek (Vathek, 1786)28 era uma figura agradável, mas quando enraivecido “one of his eyes became so terrible, that no person could bear to behold it” (p. 2). É curioso que Vathek pareça ter apenas um olho atemorizante, talvez parte do humor beckfordiano que ri da natureza ciclópica de governos totalizadores e autoritários. Adiante ele comenta sobre as pretensões intelectuais do califa e o tratamento que dava ao sábios: “He was fond of engaging in disputes with the learned, but did not allow them to push their opposition with warmth. He stopped with presents the mouths of those whose mouths could be stopped; whilst others, whom his liberaty was unable to subdue, he sent to prison to cool their blood; a remedy that often succeeded” (p. 3).
Como foi mencionado, os personagens góticos em geral não são psicologicamente desenvolvidos ou aprofundados, a grande maioria permanece imutável em suas resoluções durante toda a história. Seus pensamentos raramente são desvelados e suas vozes são ouvidas apenas em diálogos. Em parte pelo uso da terceira pessoa, em detrimento da primeira, que torna a leitura uma experiência menos dramática. Apesar das incursões subjetivas não serem levadas adiante, talvez os vilões possam ser considerados os únicos personagens que passam por um conflito interno. As pobres deliberações psicológicas (um retrocesso em relação a Lovelace) tornam-se mais evidentes durante a punição dos vilões, quando suas personalidades oscilam entre o pecado e a absolvição. Infelizmente, toda a audácia que os vilões demonstraram ao longo o romance acaba invariavelmente subjugada. É a minha opinião que algumas das excelentes construções dos vilões góticos é prejudicada pelo arrependimento de teor puritano na exoneração final.
Apesar de conseguir envenenar seu rival, um fraco e moribundo Schedoni termina sua participação como um vilão dobrado pelo arrependimento. Destronado, Manfredo (The Castle of Otranto, 1764) também se arrepende de sua vileza e se retira para uma vida de reclusão. O califa Vathek culpa sua mãe por ter insuflado a ambição desmedida em seu coração, mas seu arrependimento chega tarde, pois seu coração arderá para sempre no inferno de Giaour. O padre Ambrosio, que vendeu sua alma ao capeta, também se acovarda diante do fim e pede pela clemência divina. O demônio, enfurecido com seu tom choroso, leva-o para um vôo vertiginoso e joga-o das alturas. Em agonia, ele é deixado para à morte, por sete dias, empestado por moscas e aves carniceiras, até que uma tromba d’água finalmente leva seu corpo embora. Confissões públicas, revisões de consciência e arrependimentos finais distorcem a construção das histórias empurrando-as para desfechos moralizantes. A fim de restabelecer o equilíbrio no tecido social, para o gótico clássico inglês não basta apenas punir a maldade, mas é necessário que haja uma demonstração penitente, antes que se encerre a participação do antagonista, no intuito de assegurar as condições éticas no final. O arrependimento do vilão, seguido da declaração de mea culpa, prevalece nesses romances, apesar das pequenas variações em relação à maneira na qual o arrependimento acontece.
Enquanto reação contra o poder internacional representado pela Igreja Católica, o arrependimento do vilão reafirma os princípios políticos, sociais e religiosos seguidos pelos britânicos; ratificando a idéia de construção nacional através da oposição de valores e de culturas. Essas acomodações narrativas, por vezes apressadas e desajeitadas, parecem refletir as soluções políticas adotadas na Grã-Bretanha daquele período, as quais afirmaram e equilibraram os interesses monetários e os interesses fundiários, assegurando-lhes maneiras de se manter no poder.29

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