20050715

O Romance Gótico (Daniel Serravalle de Sá, 2005)

Diversas forma de romance surgiram no século XVIII, o que torna as definições pouco exatas. Nessa época co-existiu o romance epistolar, o romance filosófico, o romance picaresco, o romance realista, o romance sentimental, o romance libertino, o romance histórico e galante, o romance em cartas, o romance de costumes, enfim, os gêneros são muitos assim como muitos desse romances apresentam estruturas híbridas, transitando entre gêneros sem se fixar em apenas um.

Para fins mais imediatos, focalizarei aqui o romance gótico ou as literaturas que afloraram nos séculos XVIII e XIX as quais se convencionou a contoversa alcunha de "fantásticas", sendo que se trata de uma expressão que abrange múltiplas definições. O teórico da literatura Tzvetan Todorov entende que o fantástico remete a um gênero literário que suscita a ambiguidade entre realidade e sonho, ou seja, uma dúvida quanto a natureza dos eventos narrados que tanto permitem uma explicação racional, quanto outra que pressupõe a existência do sobrenatural: "Le fantastique mène donc une vie pleine de dangers, et peut s’évanouir à tout instant" (Introduction à la Littérature Fantastique, p. 46). Segundo Magalhães Jr., a literatura fantástica em suas raízes européias, floresce de dois troncos independentes, um inglês e o outro francês. Este último radica na narrativa Le Diable Amoreux, escrito em 1772, de Jacques Cazotte, praticamente a primeira demonstração de literatura fantástica no ocidente, fonte a que irão beber E.T.A. Hoffman, Nerval e todos os oníricos fantásticos de Nodier a Kafka.

O tronco inglês, por sua vez, radica impreterivelmente no romance The Castle of Otranto, cinco magros capítulos escritos por Sir Horace Walpole, e fonte da qual irão beber Ann Radcliffe, Charles Maturin, Bram Stoker, toda a literatura gótica do século XIX, como também a policial, e a de suspense dos dias de hoje. Esse é o tronco literário que pretendemos apreender para estudo.

Os escritores góticos produziram uma literatura popular, de consumo, durante os anos de 1765 a 1820, essas balizas temporais coincidem com a publicação do já mencionado The Castle of Otranto e se encerra com a publicação do romance Melmoth, the wanderer, de Charles Maturin, estes dois livros são tidos respectivamente como os marcos de início e fim do movimento gótico inglês. A partir de 1820, a ficção gótica começa a declinar, pois sua previsibilidade, impregnadas de um sensacionalismo exagerado, haviam gasto sua magia junto aos leitores. Em 1818 é publicado uma paródia de romance gótico, escrita por Jane Austen. Northanger Abbey satiriza as fantasias absurdas dos romances góticos e o seu gosto por um universo imaginário em detrimento de uma perspectiva mais realista. Por outro ângulo, o livro insinua a força de contágio da ficção na vida real, manifesta nas vicissitudes da personagem Catherine Morland.

Não obstante, o gótico "canonizado", se é que podemos chamá-lo assim, deixou marcas indeléveis e podemos achar seus elementos - cenários, símbolos, moods, enredo - disseminados em várias manifestações artísticas do mundo de hoje. Muitos elementos góticos sobreviveram ao tempo e suas convenções se perpetuam até hoje na literatura e cinema moderno.

O gênero gótico foi uma leitura muito popular para sua época e o grande sucesso de público deu início a uma série de lançamentos do mesmo gênero, por isso o gótico é encarado por uma parte da crítica como um aglomerado de formulas, convenções literárias e lugares comuns previsíveis ao leitor. Os símbolos usados pelos autores para a criação de efeito (ruínas, castelos, labirintos, igrejas), as ambientações em países distantes e católicos, a donzela em perigo, são exemplos dessa previsibilidade. Talvez a literatura gótica tenha sido um pouco decepcionante para os escritores românticos posteriores, pois os personagens fantasiosos não podiam transcender a realidade.

Entretanto, foi desse contexto cultural e desse gênero literário que o movimento romântico emergiu. Em termos de periodização, a maioria dos teóricos admite a passagem para a escola romântica deixando de fora um dos mais interessantes movimentos produzidos pela literatura. Mesmo assim, é uma corrente marginalizada pela crítica que a classifica de subliteratura sem entrada ou registro nos compêndios de literatura. O gótico permanece como um gênero menor que teve grandes influências sobre os gêneros atuais. Sem representantes entre as obras que constituem o cânone literário em língua inglesa podemos inferir, talvez, que Frankenstein, ou Modern Prometheus, escrito em 1818 por Mary Shelley, seja a obra gótica de maior difusão e longevidade, submetida a diversas releituras, especialmente no cinema.

Em parte, pode-se dizer que o romance gótico seria uma desilusão com os ideais iluministas. O romance gótico emergiu no século XVIII representando a tomada de consciência individual frente aos dilemas sócio-político-culturais da época. O efeito da individualização na literatura já havia sido estabelecido com os romances de Samuel Richardson e de outros romancistas da "sensibilidade", que em detrimento dos cenários e das aventuras romanescas investiram na psicologia dos personagens. Os romancistas góticos foram menos abilidosos em sua invectiva psicológica e são freqüentemente acostados de terem popularizado seus romances através de personagens planificados e caricaturais. Nos romances góticos, as emcees e interioridade dos personagens são extravagates de uma maneira sem precedente, suas paixões, seus medos, são deslocados para fenômenos naturais, sobre naturais e até objetos inanimados.

O gótico é um gênero tradicionalmente escrito em inglês e no Brasil não houveram obras que possam ser consideradas góticas (entretanto houve a apropiação de um discurso gótico). A localização tropical, a inexistência de castelos medievais, a condição de ex-colônia, a religião católica são fatores que contribuíram para o não florescimento do gênero no Brasil. Quando a literatura gótica estava no seu apogeu na Inglaterra, os poetas brasileiros escreviam com o sentimento barroco e árcade. Mas isso não que dizer que o gótico passou desapercebido em terras brasileiras e pode, inclusive, ter contribuído para a formação do romance brasileiro.