O trabalho destaca a presença de imagens góticas no romance brasileiro O Guarani (1857), de José de Alencar, enfocando o que há de sexual, sublime, violento e demoníaco na obra. A abordagem propõe um novo ângulo de interpretação para este romance tradicionalmente entendido pela crítica literária como manifestação indianista, rousseauniana e épico-histórica, utilizando o gótico como estratégia de leitura.
Tropical Gothic faz aproximações específicas entre O Guarani e os romances ingleses The Mysteries of Udolpho (1794) e The Italian (1797), ambos de Ann Radcliffe, e The Monk (1796), de Matthew Lewis, estabelecendo ligações através de imagens (o abismo, a montanha, o castelo) presentes nas narrativas e por meio da forma literária labiríntica que organiza os romances. De modo que se argumenta por um modelo intertextual entre a ficção gótica inglesa e o romance de Alencar. O objetivo da dissertação foi estipular alguns aspectos teóricos e temáticos a partir dos quais uma leitura comparativa pudesse ser feita. A tarefa parecia ser antagônica a princípio, mas não contraditória. O desacordo estaria nas discrepâncias histórico-culturais, políticas, religiosas e geográficas que se interpõem entre ingleses e brasileiros.
De um lado havia os romancistas ingleses situando seus romances em nações católicas e mediterrâneas. A crítica literária contemporânea já definiu plausivelmente o fundo político, de afirmação nacional e anti-revolucionário que orienta as origens do gótico inglês (1764-1820). Assim, ao ambientar suas histórias em castelos e igrejas e, ao referir-se aos costumes medievais, tais romancistas estavam apontando para as iniqüidades da Europa continental e reafirmando o projeto político inglês. De outro lado havia Alencar escrevendo de uma realidade diferente, pronunciando-se de um recém-independente país tropical, uma ex-colônia em busca de voz própria, onde a Idade Média se apresenta (se é que) como fragmento reminiscente da religião católica. No Brasil, os castelos, enquanto construções físicas, são referências inexistentes. A proposta de um gótico tropical parecia implicar um antagonismo, até terminológico, entre o “sombrio” e o “solar”, como associar essas duas literaturas aparentemente tão distintas à primeira vista?
Inicialmente foi necessário apresentar o romance gótico, discutir sua formação e os seus significados históricos. Traçam-se diferenças entre o gótico inglês e as narrativas irracionalistas, fantásticas que se praticavam em outros países da Europa, principalmente na França e Alemanha. A disposição mais lúgubre que encontrou sumarização em certas imagens literárias fez parte de um espírito de época mais sombrio que se abateu sobre a Europa no final do século XVIII. Os romances góticos fizeram um uso específico de tais imagens, refletindo seus desassossegos com os acontecimentos revolucionários iniciado nas Américas (1776) e posteriormente na Europa continental (1889), entretanto, deslocando-os para outro tempo e contexto. Além da simbologia das imagens, esses romances organizavam suas histórias através de interpolações narrativas, o que ficou conhecido como enredo labiríntico, cristalizando na ficção esses aspectos de desorientação política, demonstrando a ligação entre Literatura e História. Entendido não como um gênero literário, mas como um momento narrativo no qual se dá um desafio da Razão, o gótico representaria nos romances ingleses inquietações políticas e culturais em busca de resolução. Tais aspectos do romance gótico foram objetos de apropriação/aclimatação e se encontram presentes no O Guarani, manifestos na Casa de Mariz, na Natureza tropical, na tribo canibal aimoré e no vilão italiano.
Diante desse quadro de histórico-cultural, selecionei passagens nos romances góticos tradicionais, as quais continham imagens de abismos, montanhas e castelos, com o intuito de discutir em maior detalhe as inquietações e o éthos do século XVIII na Europa. Procuro demonstrar como as interpretações dessas imagens variavam de acordo com as inclinações políticas dos autores, do radicalismo filosófico do Marquês de Sade, do republicanismo de Mary Wollstonecraft ao monarquismo de Edmund Burke. Ao examinar os terrores sutis de Radcliffe, o horror explícito de Lewis e a paródia gótica de Austen, argumento que, apesar das particularidades nas abordagens, o século XVIII “canonizou” uma tradição gótica que destacou o antagonista estrangeiro como um objeto central para discutir assuntos de conotações políticas e nacionalistas, que esses romances invariavelmente continham. Ao fim dessa parte, a idéia foi passar ao leitor uma leitura de como as convenções góticas foram estabelecidas e, de como elas estão profundamente imbricadas com questões de identidade nacional.
Em seguida procurei isolar a relação de Alencar com essas convenções góticas que se formaram antes. Minha leitura “gótica” da obra busca apontar traços específicos da presença cultural britânica na literatura brasileira. Novamente, inicio esta parte com uma passagem contendo imagens similares do abismo, da montanha e do castelo, tentando demonstrar como Alencar as aborda na sua fundação imaginária do país. Ao explodir o solar do fidalgo português D. Antônio de Mariz (emblemático do império), juntamente com os ferozes aimorés (simbolizando a nação primitiva) e queimando o vilão italiano (representando a presença estrangeira), Alencar não desloca o debate dos problemas, como era comumente feito no romance gótico inglês, mas aborda as questões nacionais in loco. O autor utiliza a representação estereotípica dos vilões para designar uma rejeição do estrangeiro mercenário que vem ao país em busca de lucro fácil.
Tropical Gothic relê o romance O Guarani utilizando o gótico enquanto grade de leitura. A intertextualidade com o modelo inglês foi estabelecida através de imagens, símbolos e por meio da forma labiríntica recorrente nos romances. Ao longo da pesquisa apontei para as semelhanças e discrepâncias entre as narrativas mencionadas, focando aspectos relativos à percepção e descrição da Natureza, à representação de vilania e questões de identidade nacional e ao uso de um discurso gótico para purgar elementos não desejados nas narrativas. A definição “romance indianista” dada para O Guarani provém de uma sistematização literária posterior, porém Alencar não o pensava assim, por isso deu-lhe o subtítulo de romance brasileiro, destacado-lhe o caráter da nacionalidade como seu foco principal. Salienta-se que a maneira como apresentamos ou classificamos um determinado texto conduzirá a leitura que fazemos do mesmo. Porém, uma mudança de perspectiva pode renovar uma obra, revelado-lhe aspectos que se encontravam obscurecidos pela classificação.